Número total de visualizações de páginas

domingo, 16 de março de 2014

Post-Scriptum



Post-Scriptum

Quem sou?
De onde venho?
Eu sou o Antonin Artaud,
e se o disser
como sei dizê-lo,
imediatamente
vereis o meu corpo actual
voar em estilhaços
e refazer
com dez mil aspectos
notórios
um corpo novo
onde não podereis
nunca mais
esquecer-me.

A. Artaud, «Post-Scriptum», in '' Eu, Antonin Artaud'', Assírio&Alvim, 2007

domingo, 9 de março de 2014

Defesa dos lobos contra os cordeiros



Defesa dos lobos contra os cordeiros

Quereis que os abutres devorem miosótis?
do chacal que coisa pretendeis,
que se despoje de sua pele, e do lobo:
deve arrancar por si mesmo os dentes?
o que vos desgosta tanto
de comissários e pontífices?
o que mirais boquiabertos
na mentirosa tela do televisor?
quem cose ao marechal
a franja de sangue nas calças?
quem amarra o capão para o usurário?
quem se enforca orgulhoso do umbigo amuado
dessas cruzes de lata? quem
quem colhe a propina, a moeda de prata,
o óbolo do silêncio?

muitos são os enganados e poucos os ladrões.
mas, quem os aplaude? quem
os condecora e distingue? quem
está faminto de mentiras?

contemplai-vos ao espelho: covardes
que vos assusta a verdade fastidiosa
e vos repugna aprender
e encomendais aos lobos a função de pensar.
um anel no nariz é a vossa jóia predilecta.
para vós nenhum engano é suficientemente estúpido,
nenhum conselho demasiado barato,
nenhuma chantagem demasiado branda.
comparado a vós, cordeiros 
que mutuamente encegueceis 
são fraternais os corvos.
entre os lobos reina a irmandade:
vão sempre em matilhas.
abençoados sejam os ladrões: vós
convidando-os à violação,
os deitais nas vírgulas apodrecidas
da obediência, e mentis
enquanto choramingam. o que desejais
é que vos devorem. vós
não ireis mudar o mundo.

Hans Magnus Enzensberger



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Encontrar a palavra certa



Epigrama

''Podes passar uma vida inteira 
acompanhado de palavras 
sem que encontres a adequada.
Tal como um pobre peixe
embrulhado num jornal húngaro:
Primeiro, estás morto, 
segundo, não entendes húngaro.''

Niels Hav

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Rosa mutável






Rosa mutável

''Ao abrir pela manhã
rubra como sangue está.
O orvalho não a toca
com medo de se queimar.
Aberta à luz do meio-dia
é dura como um coral.
O sol assoma nos vidros
só para a ver fulgurar.
quando nos ramos começam
os pássaros a cantar
e quando a tarde desmaia
nas violetas do mar,
torna-se branca, tão branca
como uma face de sal.
E logo que a noite toca
brando corno de metal
e as estrelas avançam
enquanto se esconde o ar,
no risco fino da sombra
começa-se a desfolhar.''
(Federico García Lorca, 'Poemas', Assírio&Alvim, Lisboa, 2013)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Os memoráveis lugares do sonho

Os memoráveis lugares do sonho

O crocitar dos corvos
Rompe o silêncio sepulcral

E a mística boda alquímica,
A união perpétua do Sol e da Lua,
Está já consumada.

Juntam-se os pólos opostos
Na imensa comunhão divina,
Onde não cessa a celestial melodia

Virá porventura alguém acordar
Os aflitos que dormem
Ou os vencidos que alastram
Pelos campos intactos
Da imaculada solidão?

A névoa cobre tudo:
Sonhos e pretensão

Ora! Não terminou ainda
A procissão dos últimos
Nem o hastear das bandeiras
Que ondulam sobre os penedos

Haja aí um querer,
Além onde soçobram as multidões,
Impelido pelo triunfante vôo das águias
Que vêem onde mais ninguém vê
E se empoleiram onde ninguém
Ousa algum dia repousar.

N. Afonso



terça-feira, 31 de dezembro de 2013

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Uma capa

Uma capa

Uma capa fiz do meu canto
Debaixo a cima
Bordada
De antigas mitologias;
Mas tomaram-na os tolos
Para exibi-la ao mundo
Como se por eles fora lavrada.
Deixa, canto, que a tomem
Pois maior feito existe
Em andar nú.

(W.B. Yeats)



domingo, 15 de dezembro de 2013

Sonhos e inspiração



'' O sonho é tido, já desde a mais remota antiguidade, na conta de uma forma de inspiração. É em sonhos que os deuses falam às vítimas, etc. Convém no entanto observar que os indivíduos que trataram dos seus sonhos, até estes últimos tempos, com incomparáveis cuidados, cuidados esses puros e livres de preocupações literárias ou médicas, o não fizeram com vista a estabelecerem relações com qualquer Além. Podemos dizer que ao sonharem eles se sentiram menos inspirados do que nunca. Narram com fidelidade objectiva tudo quanto se lembram nesses sonhos. Podemos até dizer o seguinte: fora da narrativa de um sonho, em nenhumas outras circunstâncias se consegue alcançar objectividade maior. Isto porque no caso vertente nada se interpõe entre a realidade e o indivíduo que dorme, como acontece no estado de vigília com aquilo a que chamamos censura, razão, etc. Mas imaginem que ao transcreverem uma tal realidade eles exprimem parvoíces dum estilo imperfeito; caso isso suceda, logo se denunciam como gente traiçoeira. Já não descrevem um sonho, fabricam literatura. Cá por mim exijo sempre que os sonhos que me dão a ler sejam escritos em língua escorreita.'' (Louis Aragon, Tratado do Estilo, Antígona, Lisboa, 1995)

domingo, 8 de dezembro de 2013

Comércio e mercadoria



''Um político que assistia a uma sessão da Câmara de Comércio pediu a palavra, mas viu a sua pretensão negada com base na alegação de nada ter a ver com o comércio.
-Senhor Presidente- disse um membro idoso, levantando-se: considero a objecção infundada. Este cavalheiro tem uma estreita e íntima relação com o comércio: ele próprio é uma mercadoria.''
(Ambrose Bierce ''Esopo emendado&outras fábulas fantásticas'', Antígona, Lisboa, 1996)

sábado, 23 de novembro de 2013

Fala Maldoror




''Vi, durante toda a minha vida, sem uma única excepção, os homens, de ombros estreitos, praticarem actos estúpidos e numerosos, embrutecerem os seus semelhantes e perverterem as almas por todos os meios. Ao motivo das suas acções chamam: glória. Vendo tais espectáculos, quis rir como os outros; mas isso, bizarra imitação, era-me impossível. Peguei num canivete, cuja lâmina tinha um gume afiado, e rasguei a minha carne nos sítios onde se juntam os lábios. Por um instante, julguei que atingira o meu fim. Olhei num espelho esta boca  mortificada pela minha própria vontade! Cometera um erro! O sangue que corria abundantemente das duas feridas impedia-me, aliás, de perceber se era realmente aquele o riso dos outros. Porém, após alguns momentos de comparação, dei-me conta que o meu riso não se assemelhava ao dos humanos, ou seja, que não me ria. Vi os homens, de cabeça feia e olhos terríveis afundando-se em órbitas sombrias, superarem a dureza do rochedo, a rigidez do aço fundido, a crueldade do tubarão, a insolência da juventude, o furor insensato dos criminosos, as traições do hipócrita, os actores mais extraordinários, a força de carácter dos padres, e os seres exteriormente mais dissimulados, os mais frios dos mundos e do céu; fatigarem os moralistas a descobrir o seu coração e fazerem cair sobre si  a cólera implacável das alturas. Vi-os a todos ao mesmo tempo: ora com o punho mais robusto erguido para o céu , como o de uma criança, já perversa, afrontando a mãe, provavelmente animados por algum espírito infernal, com os olhos ensombrados por um remorso simultaneamente pungente e rancoroso, num silêncio glacial, não ousando exprimir as profundas e ingratas meditações encerradas no seu íntimo, de tal modo a povoavam a injustiça e o horror, e entristecendo de compaixão o Deus de misericórdia; ora, ao longo de todo o dia, desde o começo da infância até ao fim da velhice, espalhando anátemas inacreditáveis, destituídos de senso comum, contra tudo o que respira, contra si próprios e contra a Providência, prostituindo mulheres e crianças e desonrando assim as partes do corpo consagradas ao pudor. Então, os mares revoltam as águas, afundam nesses abismos as tábuas; os furacões, os tremores de terra derrubam as casas; a peste, as várias doenças dizimam as famílias devotas. Mas os homens de nada se apercebem. Vi-os também a corar, a empalidecer de vergonha devido à sua conduta neste mundo; raramente. Tempestades, irmãs dos furacões; firmamento azulado, cuja beleza não admito; mar hipócrita, imagem do meu coração; Terra, de seio misterioso; habitantes das esferas; todo o universo; Deus, que o criaste com magnificiência, é a ti que invoco: mostra-me um homem que seja bom!...Mas que a tua graça decuplique as minhas forças naturais; já que, perante o espectáculo desse monstro, posso vir a morrer de assombro: há quem morra por menos''. 
(Conde de Lautréamont/Isidore Ducasse, ''Os Cantos de Maldoror'', Poesias I&II, Antígona, 2009)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

'' Que me importa a vida? ''

'' Breve ou longa, que me importa a vida?
não temos de morrer um dia?

Por muito que se puxe e estenda o fio
não chegará um dia ao seu limite?

Quer vivas infeliz e na miséria
ou mesmo seguro e afortunado,

Tudo se equivale no dia de morrermos.
Quer a sorte nada te tenha oferecido

Quer, deste mundo, mil terras te haja dado,
tanto faz, no dia em que morrermos.

Fortuna e infortúnio: apenas sonho!
e o sonho só vale como sonho,

não há diferença no dia de morrermos.''

Rudaki, Poeta persa(880-940), in '' Irão- viagem ao país das rosas'', Ésquilo, 2007

domingo, 17 de novembro de 2013

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Orwell e a falsificação da História







'' Sei que se tornou moda dizer que a maior parte da História registada é mentira. Estou pronto a acreditar que a História, na sua maior parte, se apresenta inexacta e tendenciosa; mas aquilo que é peculiar ao nosso tempo é o abandono da ideia de que a História poderia ser escrita com verdade. No passado, as pessoas mentiam deliberadamente, ou coloriam inconscientemente aquilo que escreviam, ou lutavam pela verdade com a certeza de cometerem bastantes erros; mas faziam tudo isto sabendo que os factos existiam e que era possível descobri-los. Na prática, havia sempre uma massa factual com a qual quase todas as pessoas concordavam. É justamente esta base comum de acordo, da qual decorre que todos os seres humanos são uma única espécie animal, que o totalitarismo destrói. O desígnio resultante desta forma de pensar é um mundo em que o Chefe, ou uma qualquer súcia governante, supervisa não apenas o futuro mas também o passado. Esta prospectiva assusta-me muito mais do que as bombas- e depois das nossas experiências dos últimos anos, não se trata aqui de uma afirmação gratuita.''
(George Orwell, 1942)

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O Lago





O Lago

'' Tive eu na mocidade ocasião
De achar do mundo vasto um lugar
O qual eu não podia mais amar...
Porquanto me encantou a solidão
Dum lago agreste, por negros rochedos
Circundado, e por altos arvoredos.

Mas quando a Noite o seu sudário
Deitava em seu lugar, e em tudo à volta,
E o vento misterioso andava à solta...
E o vento um canto murmurava...
Ah...era então que eu despertava
Para o terror do lago solitário.

Contudo, tal terror não me assustava,
Mas com tremores me deleitava...
Um sentimento tal cujo mistério
Excede mil jazigos de minério...
E mesmo o teu Amor... que eu cobiçava.

No veneno da onda havia dolo,
E em seu vórtice um esquife apropriado
A quem aí buscava o consolo
De um espírito, erguendo transviado,
Em seu imaginário isolado,
Um Éden no sombrio e torvo lago.''

(Edgar Allan Poe, ''O Lago'', in ''Obra poética completa'', Tinta-da-China, Lisboa, MMIX)



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O Silêncio Branco






'' A natureza serve-se de inúmeros artifícios para inculcar no homem a noção da sua finitude- o fluir incessante das marés, a fúria da tormenta, o abalo do terramoto, o longo retombar da trovoada- mas de todos eles o mais temível, o mais aterrador, é a impassibilidade do Silêncio Branco. Todo o movimento cessa, o ar esvai-se, o céu torna-se de chumbo; o mais pequeno sussurro soa a sacrilégio e um homem assusta-se e intimida-se com o som da sua própria voz. Único átomo de vida a deslocar-se na vastidão espectral de um mundo morto, treme perante a sua própria audácia, toma consciência que a sua existência pouco mais vale que a de um verme. Surgem-lhe então pensamentos estranhos, inopinados, e parece querer revelar-se-lhe o mistério de todas as coisas. Apodera-se dele o temor da morte, de Deus, do universo- a esperança na Ressureição e na Vida, o anseio de imortalidade, a porfia vã da essência aprisionada- e é então, e só então, que o homem caminha apenas na companhia de Deus. '' (Jack London, ''O Filho do lobo'', Antígona, Lisboa, 2001)