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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Evola sobre o Zen e a vida quotidiana






Julius Evola (tradução minha)

Eugen Harrigel,  Zen e a Arte do Tiro com Arco(Assírio&Alvim, Lisboa, 1997)
 [Zen nell’arte del tirar d’arco (Turin: Rigois, 1956)]

Kakuzo Okakura, O Livro do chá, Biblioteca Editores Independentes/Cotovia
 [II Libro del Te (Rome: Fratelli Bocca, 1955)]


 '' O primeiro destes pequenos livros, traduzido do Alemão para Italiano, é único no seu género, como uma introdução directa e universalmente acessível ao espírito das disciplinas fundamentais e ao comportamento da civilização do Extremo-Oriente, especialmente do Japão. Herrigel é um Professor Alemão que foi convidado a leccionar Filosofia numa Universidade Japonesa, e decidiu estudar o espírito tradicional do país nas suas mais típicas formas vivas. Teve um especial interesse em compreender o Budismo Zen e, mesmo que possa parecer estranho, disseram-lhe que o melhor modo de o fazer seria estudar a prática tradicional do Tiro com Arco. Portanto, estudou incansavelmente essa arte durante cinco anos, e o livro descreve como o seu progresso nesse lugar e a sua penetração gradual na essência do Zen avançaram lado a lado com o Tiro ao Arco, condicionando-se um ao outro reciprocamente, levando a uma mais profunda transformação do próprio autor.
  A essência do Zen como uma concepção do mundo é, como é sabido, a sua especial interpretação do estado do nirvana, o qual, parcialmente através da influência do Taoísmo, é entendido no Japão não como um estado de beatitude ascética evanescente, mas como algo interior, uma libertação interna, uma estado livre das febres, das provações, das amarras do ego, um estado que pode ser preservado enquanto se esteja comprometido com todas as actividades e em todas as formas da própria vida quotidiana. Graças a isso, a vida como um todo adquire uma dimensão diferente; é compreendida e vivida de um  modo diferente. A ''a ausência do ego'' em que, em conformidade do espírito do Budismo, o Zen insiste vincadamente, não é no entanto aparentada com a apatia ou a atonia; dá origem a uma mais elevada forma de acção espontânea, de firmeza, de liberdade e serenidade na acção. Isto pode ser comparado a um homem que se agarra a alguma coisa convulsivamente e quando a larga, adquire uma serenidade superior, um elevado sentido de liberdade e firmeza.
  Depois de chamar a atenção para todos estes pontos, o autor nota a existência no Extremo-Oriente de artes tradicionais que surgem igualmente desta liberdade do Zen e oferecem os meios para as alcançar, através da instrução requerida para a sua prática. Por estranho que possa parecer, o espírito Zen reside nas Artes Extremo-Orientais ensinadas pelos mestres da pintura, da cerimónia do chá, do arranjo floral, tiro com arco, luta, esgrima e por aí em diante. Todas estas artes têm um aspecto ritual. Existem, além disso, aspectos inefáveis graças aos quais a verdadeira mestria em qualquer destas artes não pode ser atingida a menos que tenhamos adquirido esclarecimento interior e transformação da consciência-própria comum, o que torna a mestria numa espécie de sacramento palpável.
  Assim, Herrigel diz-nos como no aprender a esticar o arco, a pouco e pouco, por meios dos problemas envolvidos nesta arte, tal como ainda é ensinada no Japão, ele chegou ao conhecimento e à compreensão interior que buscava. Compreendeu que o tiro com arco não era um desporto mas antes uma espécie de acção ritual e uma iniciação. Para adquirir um conhecimento completo dele, teve de chegar à eliminação do próprio ego, ultrapassar toda a tensão, e alcançar uma espontaneidade superior. Só então o relaxamento muscular paradoxalmente se uniu à força máxima; o arqueiro, o arco e o alvo tornaram-se um todo. A flecha voou como por si própria e encontrou o alvo quase sem apontar. Posta nestes termos, a mestria alcaçada é um grau de espiritualidade ou ''Zen'', não como uma teoria e filosofia mas como uma verdadeira experiência, como um mais profundo modo de ser.
  Ao descrever situações deste tipo, baseado na experiência pessoal, o pequeno livro de Herrigel é importante não apenas porque introduz o leitor no espírito de uma civilização exótica mas também porque nos permite ver sob uma nova luz algumas das nossas próprias antigas tradições. Sabemos que na antiguidade, em certa medida, também na Idade Média, tradições ciosamente conservadas, elementos da religião, ritos, e mesmo mistérios eram associados com várias artes. Existiam ''bens'' para cada uma destas artes e ritos de admissão para as praticar. A iniciação aos ofícios e profissões em certas guildas e collegia ocorrriam paralelamente à iniciação espiritual. Assim, para mencionar um caso tardio, o simbolismo próprio da arte maçónica dos construtores medievais serviu de base para a primeira Franco-Maçonaria, que retirou daí as alegorias e procedimentos da ''Grande Obra''. Pode, portanto, ser isso nisto tudo que o Ocidente outrora sabia algo do que havia sido preservado até hoje no Extremo-Oriente em ensinamentos tais como ''o caminho do arco'' ou a '' arte da espada '' mantidos para serem idênticos com ''o caminho do Zen''numa positivamente singular forma de Budismo.
   O Autor do segundo pequeno livro, e viramo-nos agora para a edição Italiana do mesmo, é um Japonês interessado, acima de tudo, em problemas estéticos que estudou as  modernas escolas de arte na Europa e América mas manteve-se fiel às suas próprias tradições e comprometeu-se com uma acção eficiente e resoluta no seu próprio país contra a introdução de tendências Europeizantes. O seu  O Livro do chá confirma na parte central devotada mais estreitamente ao assunto em consideração o que temos estado a dizer.
  Houve ligações estreitas no Extremo-Oriente entre o Zen, as ''escolas de chá'' e o ''culto do chá''. Na verdade, diz-se que a cerminónia do chá, tal como era elaborada no Japão no século XVI, derivava do muito mais antigo ritual zen de beber chá de uma única chávena perante a estátua de Bodhidharma. De um modo geral, este rito cerimonial, é uma das muitas formas nas quais o príncípio Taoísta da plenitude no mínimo é expressa.
  Lu-Wu no seu livro Cha-Ching  havia já afirmado que ao preparar o chá, a mesma ordem e a mesma harmonia havia ele observado que do ponto de vista Taoísta reina em todas as coisas.
  O autor acrescenta que é parte da religião da arte da vida. ''O chá tornou-se um pretexto para o desfrutar de momentos de meditação e desapego feliz, no qual o anfitrião e os seus convidados tomam parte.'' Tanto o sítio como a estrutura das salas, construídos para este propósito especial,- as salas de chá(sukiya)- seguem o princípio ritualístico; são simbólicos. O variegado e parcialmente irregular caminho que, dentro do quadro da arte Extremo-Oriental da jardinagem leva à sala de chá é emblemática daquele estado preliminar de meditação que leva ao quebrar dos laços com o mundo exterior, ao desapego das preocupações e interesses da vida comum.
  O estilo da sala em si é de uma simplicidade refinada. Apesar da aparência despida e indigente que possa ter aos olhos de um Ocidental, segue ao detalhe uma intenção concreta. A selecção e uso dos materiais certos apelam a um cuidado infinito e atenção ao pormenor, tanto assim é que o custo de uma sala de chá perfeita pode ser superior ao de uma portada. O termo '' sukiya ''- diz o autor- originalmente significava ''a casa de imaginação'', a alusão não era de devaneios e fantasias mas referia-se à faculdade de nos desligarmos do mundo empírico, de nos recordarmos de nós próprios e tomar refúgio num mundo ideal.
  Outras expressões usadas pelos Mestres do rito do Chá são ''casa do vazio'' e ''a casa da assimetria''. A primeira destas expressões remonta directamente à noção de Vazio própria da metafísica Taoísta ( e aqui podemos recordar a parte que desempenha esta noção, quase como uma chave ou segundo plano no elemento ''aéreo'' da pintura do Extremo-Oriente). A expressão ''casa de assimetria'' refere-se ao facto de que algum pormenor é sempre, intencionalmente, deixado por terminar e o cuidado que é tido para organizar as coisas de modo a dar impressão de uma lacuna.  A razão para isto é que o sentido de plenitude e harmonia não deve surgir de algo já fixo e repetível, mas deve ser sugerido por uma incompletude exterior que impele alguém a concebê-los internamente por meio de um acto mental.
  O autor trata também das ligações existentes entre a arte do chá e aquela do seleccionar e arranjar as flores na sukiya, de novo em conformidade com o simbolismo e uma sensibilidade especial. Muitas vezes uma única flor correctamente seleccionada e colocada é o único ornamento da ''casa do vazio''.
  Por último, o autor lembra-nos que uma filosofia especial da vida quotidiana é acessória em relação ao rito do chá, tanto que na actual terminologia Japonesa, sobre um homem com falta de sensilibilidade para com os aspectos trágico-cómicos da vida pessoal diz-se que tem ''falta de chá'', enquanto que sobre aqueles que cedem a impulsos e sentimentos incontrolados diz-se que ''têm demasiado chá''. Isto traz-nos de volta àquele ideal de superioridade equilibrada, subtil e calma, que tem um papel tão grande na atitude geral do homem do Extremo-Oriente.
  Se pensarmos no amplo uso do chá no Ocidente, e das circunstâncias deste uso na nossa vida social, mais especiamente entre os círculos da moda, seria natural estabelecer comparações que mostrariam que, mesmo neste campo de lugares-comuns, como no plano das ideias, todas as coisas do Oriente são diminuídas quando importadas para o mundo Ocidental. ''

East and West, vol. 7, no. 3, October 1956, pp. 274–76



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